Taísa Resende Sousa*
Regina Lúcia Sucupira Pedroza*
Maria Regina Maciel*
Para pensar a psicanálise com crianças, articulando-a com o brincar, consideramos necessário iniciar com as contribuições do pensamento freudiano. Em Escritores criativos e devaneios (FREUD, 1907/1996a), o autor discorre sobre alguns aspectos da vida infantil, introduzindo a ideia de que o brincar na infância corresponde à fantasia e à escrita criativa na vida adulta. Ambos os fenômenos (fantasia e escrita criativa) criam um mundo próprio ou, ainda, possibilitam que o sujeito adapte alguns elementos de seu mundo, tornando-os mais agradáveis. O autor afirma que tanto o escritor criando quanto a criança brincando criam um mundo de fantasia e o vivenciam com bastante seriedade. Vemos, portanto, que há algo que perpassa o adulto e a criança: o brincar criativo, que é comum ao brincar na infância e à escrita na vida adulta.
Se o brincar criativo perpassa adulto e criança, perguntamos: como fica essa experiência na clínica psicanalítica? Há alguma diferença entre o brincar de crianças e o de adultos na análise?
Ao retomar o início da psicanálise com crianças, percebemos que Freud (1909/1996b) foi desenvolvendo seus estudos a partir de sua experiência com adultos, reconhecendo a sexualidade desde a mais tenra infância. Apesar de não ter atendido nenhuma criança diretamente, deixou algumas contribuições principalmente no texto Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. Com alguns encontros com o pai do pequeno Hans, fornecendo-lhe orientações, o autor pôde pensar algumas especificidades sobre a psicanálise com crianças (FREUD, 1909/1996b).
Para Freud, quando se analisa um adulto, procura-se descobrir suas formações psíquicas, construindo hipóteses sobre a sexualidade infantil. O que o autor defende é a possibilidade de observar, diretamente nas crianças, alguns impulsos e/ou desejos sexuais que tentamos acessar por meio da fala do adulto. Nesse sentido, a psicanálise é uma medida terapêutica em que o analista oferece ao analisando uma interpretação possível de seus sintomas, para que o próprio analisando possa reconhecer e compreender seu material inconsciente. A análise trabalha a fim de que o paciente seja capaz de ter uma compreensão consciente de seus desejos inconscientes e consiga criar um sentido próprio para eles, o que acontece pela ajuda do método interpretativo. Quando Freud (1909/1996b) esclareceu a fobia de Hans em relação aos cavalos, pôde trabalhar a resistência que poderia impedir que os pensamentos inconscientes se tornassem conscientes, e o próprio Hans teve coragem de descrever os detalhes desta fobia, sendo parte ativa na condução da análise.
Em outro texto, A história de uma neurose infantil, Freud (1918/1996e) também discorreu sobre elementos da psicanálise com criança a partir das recordações e dos sonhos que o paciente adulto trazia no consultório, sobre a história de sua infância. O sintoma veio aos dezoito anos, mas Freud percebeu que os acontecimentos dos primeiros anos de vida eram fundamentais para entender o quadro clínico. Logo após o aniversário de quatro anos, o paciente havia sido dominado por um distúrbio neurótico: uma histeria de angústia, na forma de fobia animal (também como no Pequeno Hans), só que, desta vez, de lobos, que se transformara em uma neurose obsessiva de cunho religioso.
Nesse caso clínico, o pai da psicanálise utilizou-se, junto com o paciente, do recurso do desenho, para interpretar seu sonho com os lobos. Além disso, o analisando trazia várias recordações de cenas vividas na infância, o que, para Freud (1918/1996e, p. 61), não significa que essas lembranças anteriormente inconscientes seriam sempre verdadeiras: “Elas podem ser verdadeiras; muitas vezes, porém, são distorções da verdade, intercaladas de elementos imaginários, tal como as assim chamadas lembranças encobridoras, que são preservadas espontaneamente”.
O sonhar poderia ser, então, outra maneira de lembrar e, ao mesmo tempo, de criar e imaginar. Pois uma recorrência nos sonhos pode ser a “explicação do fato de que os próprios pacientes adquirem gradativamente uma convicção profunda da realidade dessas cenas primárias, uma convicção que não é, em nenhum aspecto, inferior à que se fundamenta na recordação” (FREUD, 1918/1996e, p. 62). Tanto a criança como o adulto só conseguem criar fantasias a partir do material a que teve acesso, podendo ser pela leitura, pelas cenas do cotidiano ou por outra fonte.
A respeito do brincar, no texto Além do Princípio do Prazer (1920/1996f), ao observar seu neto de um ano e meio de idade que brincava naquele momento, Freud se indaga: por que as crianças brincam? E é a partir da observação detalhada desta brincadeira infantil que ele reconhece e interpreta o jogo do fort-da. Neste, o menino atirava um carretel para longe (quando emitia um longo e arrastado “o-o-o-o”, acompanhado por expressão de interesse e satisfação). A mãe do menino e Freud (avô da criança) concordavam em achar que isto representava a palavra alemã fort (em inglês: gone, em português, traduzido como: ir embora). Puxava então o carretel e saudava o seu reaparecimento com um alegre da (ali). Então, esta era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno. A interpretação deste jogo relacionava-se ao fato de deixar a mãe ir embora sem protestar, encenando o próprio desaparecimento e retorno. A experiência da criança se transformara em brincadeira, por repetidas vezes, passando de uma posição passiva para uma ativa, como forma de lidar com as pulsões, tanto de vida como de morte. O brincar caracterizava-se, assim, como um modo de a criança se expressar e elaborar a ausência materna.
A partir das contribuições freudianas, é possível evidenciar que a psicanálise com crianças possui algumas especificidades que a diferencia do trabalho com os adultos. Desde a criação da psicanálise, vemos como algumas mudanças em relação à técnica e ao método são importantes para a expansão psicanalítica, o que exige uma fundamentação teórica para sustentá-la. A cada atendimento, há um manejo necessário e uma reflexão sobre ele. Há um importante movimento: a teoria guiando a clínica e a clínica fundando, fundamentando e recriando a teoria. Mesmo sabendo da importância do método clínico psicanalítico em operar com o inconsciente, emerge uma necessidade de reconhecer as especificidades do trabalho com crianças, adolescentes, adultos e idosos. Na perspectiva winnicottiana, o manejo técnico é associado, sobretudo, ao brincar (FRANÇA; PASSOS, 2019). Dessa forma, é possível entender como Winnicott transformou a noção de análise quando fez uma aproximação com a noção do brincar, propondo uma ampliação de recursos utilizados pelo analista (FRANCO, 2003).
Podemos, assim, pensar o brincar não apenas como meio de expressão, mas também como experiência criativa. Winnicott (1975) faz da suposta barreira à associação livre da análise com criança, uma torção que modifica o que entendíamos, até então, sobre o brincar. Durante o processo analítico, as falas e as brincadeiras vão ganhando sentido, a partir do encontro entre paciente e terapeuta. Nesse caso, a dimensão do brincar vai se expandindo para além de modo de expressão característico das crianças, estando relacionado à continuidade do ser. Pela capacidade de experimentar e de vivenciar – com o outro – num espaço potencial (que não é fora e nem é dentro), o brincar como um fenômeno transicional pode acontecer.
O conceito de transicionalidade ancora-se no encontro entre o mundo psíquico e o mundo socialmente construído. É um campo intermediário que se constitui tanto pela realidade interna quanto pela externa, o que é fundamental para entender o brincar na teoria de Winnicott. Existe também uma relação com o sentido da experimentação, tendo como pano de fundo as vivências de ilusão e de desilusão. As experiências de ilusão precisam acontecer antes da transicionalidade; e a desilusão advém de forma mais presente junto e após a transicionalidade (SOUSA, 2019).
No momento de vivenciar a ilusão, há uma mãe suficientemente boa, em sua preocupação materna primária, que se adapta de maneira quase completa ao seu bebê. Processualmente, essa adaptação vai se transformando em momentos pequenos de menor adaptação, quando o bebê vai demonstrando uma crescente capacidade de suportar essa ausência materna. Assim, bebês e crianças vão tendo um contato criativo com o mundo, apropriando-se da realidade externa e enriquecendo-se com suas experiências internas (WINNICOTT, 1975).
Com essas vivências, o indivíduo vai se constituindo, adquirindo o estágio do “eu sou”, processo resultante da integração do ego. Com esse estado de diferenciação entre “eu” e “não eu”, o sujeito caminha para uma conquista básica para o seu amadurecimento emocional e para a sua saúde: a construção de seu verdadeiro self e de seu sentimento de realidade. O analista, tanto de crianças como de adultos, pode auxiliar nesse processo de amadurecimento e de conquista do self (WINNICOTT, 1975).
O que Winnicott propõe é a construção de uma sessão viva e criativa, que busque a espontaneidade e a integração do self. É pela capacidade do brincar criativo do analista e do analisando que a sessão acontece, tanto com crianças quanto com adultos. Quando o paciente não é capaz de um brincar espontâneo, o terapeuta precisa auxiliar no desenvolvimento ou na recuperação de sua capacidade brincante, para posteriormente manifestar a sua própria criatividade. Ele nos lembra que, quando o analista não tem essa capacidade de brincar, precisa procurar outra tarefa para desempenhar (WINNICOTT, 1975). Afinal, o brincar deve, enquanto verbo e não substantivo, ser olhado como potencialidade humana intimamente ligada aos fenômenos transicionais.
O que é um fenômeno transicional?
Um fenômeno transicional refere-se a uma dimensão do viver que não se reduz nem à realidade interna nem à realidade externa. Este fenômeno acontece num lugar em que ambas as realidades (interna e externa) encontram-se, constituindo-se na experiência do brincar e, mais adiante, na experiência cultural. Especificamente em termos de amadurecimento emocional, esse conceito refere-se ao momento no qual se inicia a divisão eu/não-eu, o que pode ser um som, uma música ou uma melodia, por exemplo.
O objeto transicional, por sua vez, refere-se à primeira possessão não-eu, sendo assim caracterizado quando um objeto – seja cobertor ou ursinho de pelúcia – é usado transicionalmente. O objeto que tem, por exemplo, o cheiro da mãe, tem um valor para o bebê – não apenas pelo cheiro, mas também pela possibilidade de ter consigo a sensação de que a mãe existe e está com ele, consolidando o sentimento de continuidade da existência (SEKKEL, 2016).
Para desenvolver essa noção de objeto transicional, Winnicott (1941) partiu da observação de bebês em uma situação estabelecida, na clínica no Paddington Green Children’s Hospital, em Londres. Foi observando o comportamento da criança com a espátula que ele começou a construir o conceito do brincar como fenômeno transicional que permite infinitas possibilidades rumo às experiências criativas.
No primeiro momento desse jogo, o bebê, sentado no colo da mãe, observa uma espátula de metal; demonstrando interesse pelo objeto, hesita e tenta tocá-lo, mas, observando os adultos, freia seu desejo de obtê-lo, representando certa confiança no ambiente e em si mesmo. É preciso que os adultos aguardem e deixem que a brincadeira continue sendo espontânea. O segundo momento refere-se à manipulação da espátula, aceitando a realidade do desejo, colocando-a na boca, salivando e mastigando-a, “como se” estivesse comendo ou fumando. Quando o bebê está de posse do objeto, pode brincar de comidinha, junto com as pessoas ao seu redor: “Nunca vi qualquer evidência de um bebê ficar desapontado com o fato de a espátula não ter, na verdade, nem comida, nem algo que contém comida”, declarou Winnicott (1941, p.142), caracterizando as primeiras experiências de representação e a capacidade de brincar. O terceiro momento é marcado pelo jogo da repetição do movimento de jogar o objeto e obtê-lo de volta. O bebê deixa a espátula cair por engano e um adulto a resgata; a partir disso, cria-se um jogo, deixando-a cair propositalmente. A criança brinca de jogar a espátula ao chão por várias vezes, até que deseja ir para o chão e brincar com o objeto até perder gradativamente o interesse e voltar-se para outro objeto.
Winnicott (1941) relaciona esse terceiro instante com o jogo fort-da, já descrito neste trabalho. O carretel, que representa a mãe, é jogado para longe, indicando um ato de livrar-se dela, podendo dominar a relação com a mãe interna, até mesmo pela agressividade ao desfazer-se dela e, depois, recuperá-la. A criança vai se tranquilizando em relação ao destino de sua mãe interna, sendo ativa no jogo e, assim, dando contorno aos seus ímpetos, sentindo confiança no ambiente, naquela mãe que vai e volta, que some e aparece. O brincar também possibilita que a criança domine a situação de separação da mãe e outras situações que possam causar sofrimento.
Deste ponto de partida que diz respeito ao processo de amadurecimento emocional da criança, podemos pensar sobre o que se passa na clínica psicanalítica. O jogo de espátula, recém-mencionado, relaciona-se ao jogo de rabisco proposto por Winnicott (1941), no âmbito da prática psicanalítica. Sua essência é a criação de um espaço transicional. O período inicial de hesitação no jogo de espátula pode ser transformado em um desabrochar criativo, como no rabisco e no desenhar. Partindo de algo sem forma, como um simples rabisco, é possível criar um sentido para a experiência. Paciente e terapeuta brincam juntos, modificando alternadamente o desenho um do outro, sendo um processo de construção conjunta. A partir desse espaço potencial, a criança passa a existir ou continua existindo, para depois aprender a criar, a sonhar e a brincar, vivenciando diferentes experiências culturais (WINNICOTT, 1941).
O jogo do rabisco: uma vinheta clínica
Em relação ao jogo do rabisco, nos remetemos a uma vinheta clínica de um caso atendido por uma das autoras deste trabalho. Joana1 tem sete anos e ficou em atendimento por pouco mais de um ano. É uma menina com a rotina agitada, encontrando dificuldades de tempo até para ir à terapia. Ela estuda em escola integral, é filha de pais separados que conversam entre si apenas sobre ela. A principal queixa era em relação à separação conturbada dos pais e à dificuldade de Joana de se “separar” da mãe, pois logo que os pais se separaram, quando ela tinha três anos, ela foi dormir na cama com a mãe e assim permaneceu. Hoje em dia, está caminhando para conseguir dormir sozinha. A guarda é da mãe, e o pai a encontra nos fins de semana, quinzenalmente, ou quando tem folgas no trabalho durante a semana.
Joana é uma menina que gosta muito de brincar, quase toda sessão chegava animada perguntando: “De que vamos brincar hoje?”. Em alguns momentos, quase não esperava um jogo acabar e logo perguntava qual seria o próximo, observando bem o que estava dispon?vel na sala de atendimento. Ela demonstrava certa dificuldade em tolerar as perdas nos jogos e tentava at? burlar algumas regras para vencer. Todavia, durante o processo de an?lise, p?de criar importantes recursos para lidar tanto com as perdas quanto com sua ang?stia de n?o querer sequer um intervalo entre uma brincadeira e outra. Tamb?m demonstrava certa resist?ncia quando fal?vamos que o nosso tempo estava acabando. Com os nossos encontros cont?nuos e com a nossa disponibilidade para brincar, experienciamos, criativamente, possibilidades para que Joana pudesse aprender a criar, a sonhar e a brincar.
No in?cio, quando as sess?es acabavam, ela fazia uma voz diferente ao encontrar sua m?e na sala de espera, contando que gostaria de voltar a ser uma beb? bem pequena. Quando perdia nos jogos, ou Joana tentava trapacear e mudar as regras ou fazia esta voz, como se fosse uma tentativa de sedu??o para tentar alterar a realidade externa. Fomos brincando com esses aspectos para que ela pudesse notar que era preciso aprender com as perdas (tanto nos jogos como na vida: por exemplo, perder a conviv?ncia com os pais enquanto um casal) e que tamb?m era importante ir desenvolvendo seu sentimento de continuidade de exist?ncia. Brincando de querer voltar a ser beb? e brincando in?meras vezes de casinha (onde a analista era a m?e e ela, a filha), ela conseguiu ser ela mesma e ir caminhando rumo ? independ?ncia. Mesmo com alguns conflitos, Joana apresentava um bom potencial criativo e uma boa capacidade de brincar, e aos poucos ela foi aprendendo a perder e a se frustrar.
Com essa vinheta cl?nica, vemos que no brincar winnicottiano h? uma topologia e uma temporalidade espec?ficas. Em termos de espa?o, ele n?o fica nem dentro e nem fora da subjetividade; fica na fronteira, no entre. N?o est? no espa?o n?o-eu do beb? e nem inteiramente dentro de sua subjetividade e de seu corpo. Portanto, o brincar est? no espa?o potencial ? que pode ser pensado como um espa?o que vai se constituindo ?entre? a m?e e o beb? ? e posteriormente entre a crian?a e outras pessoas com quem se vincula, aplicando esta no??o de espa?o potencial para as sess?es anal?ticas (FRANCO, 2003).
Em uma das sess?es, ao propor o jogo do rabisco, foi interessante notar o movimento de Joana, que iniciou de forma colaborativa, buscando construir algo junto ? analista, mas depois tomou o desenho para si e o foi destruindo, fazendo novos rabiscos por cima. Ela dizia: ?parece um tobog?…?, mas depois escreveu: ?montanha russa maluca. A montanha russa, ela explodiu e soltou um pum e fim?.
O sentido do conflito expresso no desenho parecia claro: o self de Joana, que at? ent?o estava sendo integrado, posteriormente foi sendo destru?do, ?explodindo e fim?. Isso se deu a partir de uma situa??o externa, como a separa??o dos pais, que provocou altera??es em sua rotina e em seu mundo interno. A partir da?, restou a Joana responder aos acontecimentos e n?o amadurecer de dentro para fora. Felizmente, a menina conseguia expressar isso, tanto por meio do desenho como por suas falas, num espa?o que foi sendo constru?do no encontro entre analista e analisando. Mesmo com esse conflito, ela apresentava grandes recursos e uma capacidade de simboliza??o bem desenvolvida, caminhando bem no processo de an?lise.
Al?m dessa possibilidade de elabora??o de conflitos e organiza??o interna, o jogo do rabisco consiste em um espa?o de experi?ncia na sess?o, um espa?o potencial e uma experi?ncia criativa, que proporciona a expans?o do ser. ? um momento em que terapeuta e paciente brincam juntos, divertem-se juntos, respeitando um ao outro, at? mesmo no momento em que Joana precisou tomar o desenho para si e destruir ? de certa forma ? o que havia come?ado, para construir algo novo: de tobog? a montanha-russa.
O brincar, como uma sutileza entre o subjetivo e o objetivo, precisa ser entendido como algo al?m de uma vis?o rom?ntica e agrad?vel, considerando seu elemento, que pode se tornar assustador. Em alguns momentos, a crian?a precisa organizar a brincadeira antes de come?ar a brincar, tentando se prevenir desse aspecto assustador, ou ent?o necessita que algu?m fique observando e acompanhando, para que sua dimens?o criativa seja preservada. Cabe ao analista sustentar essa capacidade de criar e de brincar (FRANCO, 2003). Na psican?lise, tanto com crian?as como com adultos, o brincar ? protagonista, precisando ser reconhecido em toda a sua potencialidade, valorizando tamb?m o setting como espa?o intermedi?rio para cria??o (FRAN?A; PASSOS, 2019).
Percebemos que esse brincar permite tamb?m a integra??o do self. O beb?, que se encontra em um estado inicial de n?o-integra??o, ao sentir confian?a e seguran?a no ambiente, vai se desenvolvendo rumo ? integra??o, assim como Joana caminhava. E esse caminho ? facilitado pela experi?ncia do brincar.
A transi??o do estado de n?o-integra??o para o estado de integra??o remete ? evolu??o do funcionamento ps?quico do princ?pio de prazer ao princ?pio de realidade, postulado por Freud (1911/1996c). Nesse texto, o autor afirma que, com a introdu??o do princ?pio de realidade, o fantasiar, que come?a nas brincadeiras infantis e se conserva em forma de devaneio nos adultos, abandona a depend?ncia de objetos reais, possibilitando a cria??o e a imagina??o.
Em termos de constitui??o da crian?a, podemos nos remeter ? proposta anal?tica de Winnicott (1975), destacando que o que ? valorizado por ele no jogo do rabisco, todavia e diferentemente da proposta freudiana, n?o ? o sentido do conflito em si ou o que os objetos simbolizam, mas sim a cria??o de um espa?o de experi?ncia, a partir do encontro com o outro. Nesse processo, pode ocorrer uma experi?ncia de ser que parte de uma comunica??o prim?ria, que ? subjetiva, para outra viv?ncia de sentimento de integra??o, que est? ligada aos objetos do mundo compartilhado. Essas comunica??es ocorrem a partir do verdadeiro self, que ? n?cleo central da personalidade (LINS; LUZ, 1998).
A no??o de transicionalidade refere-se ao viver criativo, ? maneira pela qual cada um encontra de estar vivo e lidar com as realidades interna e externa, expandindo o verdadeiro self. Segundo Winnicott (1975, p. 100), a criatividade ?est? presente tanto no viver momento a momento de uma crian?a ?retardada? que frui o respirar, como na inspira??o de um arquiteto ao descobrir subitamente o que deseja construir?. Tudo isso se relaciona com a provis?o ambiental, com a capacidade do ambiente se adaptar ao sujeito, de maneira suficientemente boa, e com a capacidade do sujeito de se adaptar ao ambiente, criando formas de lidar com sua realidade.
O ambiente suficientemente bom: outra vinheta cl?nica
Quando o ambiente ? suficientemente bom, ? poss?vel a continuidade dos processos de matura??o da crian?a, podendo permitir que ela concretize o seu potencial. Esse ambiente suficientemente bom refere-se ? apresenta??o cont?nua do mundo ? crian?a, o que, necessariamente, aponta para falhas e para a imperfei??o, pois ? algo que n?o pode ser realizado mecanicamente, s? podendo acontecer por meio do manejo de um ser humano (WINNICOTT, 1979/1983).
Ao mencionarmos esse cuidado t?o caro a Winnicott, que diz respeito ? import?ncia da continuidade entre os diversos momentos por que passa a crian?a em seu amadurecimento, nos lembramos de uma experi?ncia vivenciada por outra autora deste trabalho, com um beb? de noves meses. Este fato serve como um exemplo de acolhimento ao beb? por parte de um ambiente suficientemente bom, capaz de estar atento ? import?ncia de uma apresenta??o continuada do mundo ? crian?a. Afinal, quando o beb? tem o sentimento de continuidade da exist?ncia, ele pode suportar o ?desilusionamento? no qual, gradativamente, vai deixando a experi?ncia de onipot?ncia e aceitando a realidade compartilhada (MACIEL, 2016).
O beb? ao qual nos referimos frequentava uma creche, em tempo integral. Seus pais, de noite, quando iam coloc?-lo para dormir, come?aram a perceber que ele emitia um som (quase uma melodia musical). Preocupados, os pais foram procurar a diretora da referida institui??o. Esta profissional chamou a cuidadora/educadora da crian?a, que esclareceu (ao pedir para os pais que reproduzissem o som que a crian?a emitia) que aquela era a m?sica que cantava para os beb?s quando iam dormir (na hora institucionalmente prevista para tal). Ent?o o menino n?o estava em sofrimento (ao menos ainda!). De certa forma ele estava se ninando, estabelecendo uma continuidade entre os diversos momentos de dormir. Com esse esclarecimento, os pais decidiram tamb?m cantar a mesma m?sica, em casa, ao colocarem o filho para dormir. Esse relato nos fez pensar na import?ncia de um ritmo nos cuidados com o beb?, a fim de facilitar o seu sentimento de continuidade da exist?ncia. Afinal, podemos dizer, conforme Winnicott (1979/1983), que se sentir privado deste sentimento significa ser exclu?do do espa?o do brincar.
Sabemos que, em termos cronol?gicos do amadurecimento emocional, o autor postulou que nos primeiros seis meses de vida h? um estado de depend?ncia absoluta da crian?a em rela??o ao meio; ? um per?odo em que, do ponto de vista do beb?, n?o h? uma diferencia??o entre ?eu? e ?outro?. M?e e beb? est?o fundidos psiquicamente e h?, tamb?m, uma depend?ncia fisiol?gica absoluta. O segundo momento, de depend?ncia relativa, acontece por volta dos seis meses aos dois anos (idade que tinha o beb? do exemplo acima), em que a crian?a vai se descobrindo, aos poucos, como um ser diferente, separado da m?e e do mundo externo. Depois disso, as crian?as v?o adentrando no est?gio de independ?ncia relativa, nunca alcan?ando a independ?ncia absoluta. Essa mudan?a da depend?ncia absoluta rumo ? independ?ncia ? facilitada por meio dos objetos transicionais, que representam a passagem do beb? de uma fase inicial de indiferencia??o com a m?e para o reconhecimento da m?e como algo externo e separado. O uso desses objetos vai se ampliando, tornando-se um espa?o intermedi?rio entre as realidades interna e externa, que se torna presente quando estamos criativos no mundo da cultura (WINNICOTT, 1975).
O uso do objeto, o manejo cl?nico e o brincar criativo
Em rela??o ao uso do objeto, Winnicott (1975) traz uma novidade referente ao que acontece transferencialmente entre paciente e terapeuta. Dessa forma, amplia o conceito de transfer?ncia descrito inicialmente por Freud (1912/1996d). Para este ?ltimo autor, a transfer?ncia est? relacionada ? repeti??o de prot?tipos infantis ligados ?s ?imagos? parentais, podendo ser conscientes ou inconscientes, como s?o na maioria das vezes. Al?m disso, a transfer?ncia, na an?lise, surge como forma de resist?ncia.
Winnicott, todavia, apresenta um novo olhar sobre esse fen?meno, ao defender que o que acontece transferencialmente na rela??o anal?tica inclui ? al?m do que Freud (1912/1996d) postulou ? as primeiras experi?ncias do beb? ao se relacionar com sua m?e, de depend?ncia absoluta, rumo ? independ?ncia, fazendo uso de objetos de forma criativa. Parece-nos, nessa perspectiva, abrir-se para a transfer?ncia como aquilo que, enquanto experi?ncia, pode criar algo novo que diz respeito ao uso do objeto.
Este uso n?o ? instrumental, muito menos repetitivo, mas sim criativo. No processo anal?tico, o que permite a amplia??o da capacidade do paciente em usar criativamente o objeto ? o encontro com um analista espont?neo e aut?ntico, que possibilite fluir o verdadeiro self do seu paciente. Nesta rela??o, a confian?a se mostra um elemento fundamental (MELLO FILHO, 2003).
Desse modo, a an?lise, tanto com crian?as quanto com adultos, pode permitir a continuidade do sentimento de exist?ncia, o que se d? a partir da experi?ncia de holding, que ? propiciada pelo encontro com o outro, em um setting. Na abordagem winnicottiana, a an?lise seria uma met?fora dos cuidados maternos, em que o analista poderia funcionar como um espelho ? como o olhar da m?e refletindo o rosto da crian?a ?, sendo que cada analista poderia olhar e intervir, mostrando ao analisando quem ele ?. O analista pode ser usado como um objeto transicional, adaptando-se ?s necessidades do analisando ? de forma suficientemente boa ?, permitindo o uso criativo do objeto ao brincar e criar junto (MELLO FILHO, 2003).
Hisada (2002) tamb?m enfatiza a import?ncia que Winnicott d? ao setting na cl?nica psicanal?tica, ao afirmar que essa no??o se relaciona ? ritmicidade, presente desde a rela??o m?e-beb?, como vimos no exemplo do beb? que frequentava a creche. Quando a m?e ou a cuidadora organiza o mundo de seu filho, compartilhando ritmos, oferece condi??es para o seu sentimento de continuidade de exist?ncia. No ?mbito cl?nico, o ritmo nos processos criativos relaciona-se ao holding como met?fora dos cuidados maternos.
O manuseio do setting se torna fundamental, principalmente com pacientes mais regredidos, construindo um ambiente est?vel que proporcione a experi?ncia de aconchego e de continuidade, sendo uma capacidade do analista em se dar ao paciente, estando dispon?vel para brincar criativamente. O setting ?, portanto, o que possibilita o manejo como procedimento cl?nico necess?rio, tanto na psican?lise com crian?as quanto com adultos, quando houve falha no processo de amadurecimento (HISADA, 2002).
Na psican?lise com crian?as torna-se importante o brincar criativo, em que cada um pode ir experimentando novas formas de estar no mundo. Por meio do encontro com o outro, ? poss?vel que sejamos criativos; imaginando situa??es, reproduzindo e criando momentos importantes da vida. No brincar, experienciamos tanto momentos de prazer quanto de desprazer, o que pode ser uma fonte de conhecimento sobre si e sobre o mundo. ? um ato reflexivo e criativo, oferecendo condi??es de uma sensibilidade relacional, assumindo os paradoxos existentes. Nessa experi?ncia, tanto crian?as como adultos podem elaborar suas viv?ncias e se manifestar criativamente perante as a??es do mundo; al?m disso, torna-se poss?vel ainda a cria??o e o fortalecimento do v?nculo entre crian?as e adultos, potencializando as suas tantas chances de constitui??o subjetiva (SOUSA; PEDROZA; VOLPE, 2019).
Concluindo com a obra Anne with an ?e?
Ao trazermos a reflex?o do brincar como uma experi?ncia criativa na psican?lise com crian?as, recorremos primeiro ?s contribui??es freudianas para depois adentrar nas particularidades winnicottianas, principalmente sobre o brincar como fen?meno transicional, relacionado ao sentimento de continuidade de exist?ncia e ao viver criativo. Esta compreens?o tem a ver com o existir, que se inicia nas primeiras brincadeiras infantis e vai sendo transposto para todas as fases da vida humana. Para que haja uma continuidade de espa?o, tempo e de sentimento de exist?ncia, ? fundamental que se tenha um ambiente suficientemente bom, que inspire confian?a. Essas ideias s?o tamb?m importantes no manejo cl?nico e na rela??o entre analista e analisando, por meio de um encontro entre as ?reas l?dicas tanto do terapeuta quanto do paciente.
Com essas ideias, optamos por fazer uma conclus?o do trabalho relacionada com um elemento da arte: Anne with an ?E? (ANNE…, 2017). ? uma s?rie de televis?o canadense estreada em 2017, baseada no livro Anne de Green Gables, de 1908. Trata-se de uma adolescente que perdeu os pais ainda quando era beb? e viveu ora em orfanatos, ora na casa de outras fam?lias, cuidando de outras crian?as, na d?cada de 1890. Ap?s uma vida de viol?ncias tanto nos orfanatos quanto na casa desses estranhos, ela ? adotada pelos irm?os Marilla e Matthew Cuthbert.
? a hist?ria do amadurecimento da adolescente, que luta por aceita??o e para encontrar o seu lugar no mundo. A trama oferece in?meras reflex?es, como da igualdade de g?nero; no entanto, focaremos na rela??o de Anne com sua fam?lia adotiva. A personagem, mesmo com toda a dificuldade encontrada no mundo externo (de abusos nos orfanatos e nas fam?lias anteriores), apresentava uma importante capacidade interna de brincar, principalmente com as palavras, ao ler, falar ou escrever, fazendo uso desses recursos. Tanto a leitura como a escrita s?o usadas como fen?menos transicionais. Ela tinha habilidade para imaginar e criar uma realidade mais agrad?vel do que a que existia, brincando com as palavras, mergulhando no mundo da leitura, encenando personagens e sonhando.
A nossa escolha em trazer essa produ??o art?stica para o nosso trabalho foi por ressaltar uma personagem ? Anne ? que vivia criativamente e brincava em todos os ?mbitos de sua vida. Isso nos fez lembrar os relatos de Clare Winnicott (1978) sobre a capacidade brincante de seu marido. O brincar, portanto, faz refer?ncia ? qualidade do viver, o que vai al?m de brincar de jogos e brinquedos. Vai al?m da idade cronol?gica, sendo uma capacidade de operar na ?rea intermedi?ria sem limites. Mundo interno e externo v?o se compondo na experi?ncia do viver criativo. Clare e Donald Winnicott brincavam com as coisas, dando uma nova disposi??o a elas, de acordo com o humor.
Recuperando as ideias freudianas de que as brincadeiras infantis se relacionam com a fantasia, com a escrita criativa e com o devaneio, vemos como Anne se apropria de todos esses elementos ao viver sua adolesc?ncia. ? uma personagem que sonha, que cria e que brinca. Pela leitura winnicottiana, podemos notar que Anne, mesmo com as adversidades, consegue ter uma linha de exist?ncia, expandindo o seu verdadeiro self. Por meio do brincar, ela vive criativamente, de forma espont?nea e n?o submissa. Com seu jeito aut?ntico de ver e de criar o mundo, ela conquista as pessoas e ? simultaneamente ? encontra finalmente um ambiente seguro em Green Gables, por meio do cuidado e do amor de Marilla e de Matthew, que ocupam os lugares das figuras parentais.
Ainda que na s?rie n?o haja nenhuma rela??o entre analista e analisando, conseguimos transpor nosso pensamento para o campo da an?lise, sobretudo com crian?as. A constru??o de um setting facilitador ? de extrema import?ncia, bem como a presen?a de um analista suficientemente bom. A proposta anal?tica, tanto com crian?as como com adultos, ? a cria??o de uma sess?o viva e alegre, possibilitada pela capacidade de brincar do analista e do analisando. O terapeuta, quando se adapta ?s necessidades do paciente, permite o uso criativo do objeto ao brincar e criar junto. Portanto, tanto a ado??o de Anne quanto o encontro entre pacientes e terapeutas podem ? de certa forma ? reorganizar as viv?ncias de mundo interno e externo. Marilla e Matthew estavam dispon?veis para brincar e para aprender com Anne. Pensemos que, se Anne n?o tivesse encontrado um ambiente favor?vel ? sua constitui??o, sua capacidade brincante e criativa poderia n?o emergir. Assim tamb?m pode acontecer em momentos de an?lise, pois possivelmente, se algumas crian?as n?o encontrarem amparo em sua vida ? o que pode ser representado pela figura do analista ? poder?o n?o continuar a sua linha de exist?ncia e, talvez, emergir um sujeito falso self.
Assim, o brincar ? enquanto verbo e n?o substantivo ? ? olhado como potencialidade humana intimamente ligada aos fen?menos transicionais. ? a este brincar enquanto verbo que nos referimos quando trazemos a experi?ncia de Anne, que brinca at? mesmo com os elementos da floresta quando caminha de sua casa para a escola. No momento em que o professor pede para que ela leia um texto, ela interpreta e d? vida a ele, com muita intensidade. Quando encontra outra professora, mais criativa e brincante, Anne se identifica e deseja ser como ela, inclusive em seus ideais feministas e de inova??o em educa??o. Ela brinca com seus amigos da escola e tamb?m da fazenda de uma maneira muito criativa, sendo fiel a cada hist?ria que cria. O brincar ? muito mais do que um recurso t?cnico! ? uma experi?ncia criativa relacionada a todas as ?reas do viver. Vemos como Anne faz uso de diferentes objetos: um simples galho ganha vida e pode se transformar em uma poderosa espada; uma coroa de flores, criada por ela mesma, a torna uma importante rainha; ou, ainda, sua lousa de giz vira um escudo para defend?-la. Na an?lise, importa perceber como analista e analisando est?o usando os objetos, j? que eles podem ser oferecidos, trocados ou recusados.
Por fim, notamos como Anne, Matthew e Marilla, enquanto fam?lia, foram se transformando durante a conviv?ncia. Podemos dizer que eles conseguiram viver criativamente e inspirar confian?a, a partir de um encontro genu?no. No campo anal?tico, espera-se que as pessoas estejam dispon?veis para brincar. Ao analista cabe a cria??o de um setting favor?vel e confi?vel, possibilitando que o potencial criativo se transforme em experi?ncia criativa. Sigamos brincando e criando!
*Ta?sa Resende Sousa ? Psic?loga e Psicanalista, possuindo doutorado em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar, pela Universidade de Bras?lia (UnB) . Ela ? especialista em Processos de Desenvolvimento Humano e Sa?de e autora do livro ?O brincar criativo: contribui??es da psican?lise e da educa??o?. Atende crian?as, adolescentes e adultos de forma presencial em S?o Paulo e online.
*Regina L?cia Sucupira Pedroza possui doutorado em Psicologia pela Universidade de Bras?lia (2003) e p?s-doutorado em Sciences de l?Education pela Universidade Paris V. Atualmente ? professora associada da Universidade de Bras?lia no Instituto de Psicologia.
*Maria Regina Maciel possui mestrado em Psicologia pela Pontif?cia Universidade Cat?lica do Rio de Janeiro e doutorado em Sa?de Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). Atualmente ? professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).