Memória e justiça: a psicologia no atendimento às vítimas de violência.

Por Bruno Cervilieri Fedri*

As estatísticas de violência no Brasil são alarmantes e já conhecidas, dada sua gravidade e presença desde as grandes cidades até os municípios com menor número de habitantes. O Atlas da Violência, publicação mais recente até o momento, aponta que no Brasil foram assassinadas mais de 59.000 pessoas no ano de 2015. As regiões norte e nordeste apresentaram aumento no número de homicídios de mais de 100% em comparação com os estudos anteriores, tendo como principais expoentes os estados do Rio Grande do Norte, Sergipe e Maranhão (Cerqueira, Lima, Bueno, Valencia, Hanashio, Machado & Lima, 2017).

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2017) do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada nove minutos uma pessoa é assassinada no Brasil, índice de violência que supera os de países em guerra declarada, como a Síria.

Mais precisamente no Estado de São Paulo observou-se, no entanto, o recrudescimento no número de homicídios, de 21 por cem mil habitantes para 12 homicídios por cem mil, uma diminuição de 44% de acordo com o Atlas da Violência de 2017. Na região do Grande ABC observa-se uma expressiva variação dos números de homicídio, sendo São Caetano do Sul apresentando 7 homicídios por cem mil enquanto Diadema apresenta mais que o dobro, 17 homicídios por cem mil habitantes (Cerqueira, et al., 2017).

São números alarmantes que servem para reflexão, especialmente para futuros e futuros profissionais da Psicologia que todos os anos iniciam seus estudos comprometidos com a singularidade dos indivíduos e confiantes na potencialidade transformadora do diálogo. A violência, vale ressaltar, é um dos fenômenos mais desafiadores para o trabalho dos profissionais da Psicologia justamente porque atenta contra aquilo que este profissional tem como principal instrumento: sua subjetividade. A violência emudece, hierarquiza, submete e objetaliza. Pode ser ruidosa, mas também silenciosa e imperceptível e para que ela seja objeto de atenção e transformação é necessária a conscientização de sua dimensão. (Souza, 2006)

Não raro, diversos estudantes de Psicologia desconhecem a realidade social violenta que os permeia e tal desconhecimento desfavorece a criação e manutenção de práticas coletivas e que favoreçam a cidadania e o acesso à justiça por parte da população – e estes temas são de especial importância para o psicólogo. Além disso, é comum observar a ausência dos princípios e valores relacionados aos direitos humanos no trabalho realizado por alguns profissionais, especialmente inseridos nas grandes especialidades da Psicologia, como a Psicologia Jurídica. A dignidade da pessoa humana e seu direito para com o acesso à justiça são pressupostos para se trabalhar com vítimas de violência, especialmente vítimas de crimes contra a vida. (Schilling & Kamimura, 2009).

Observa-se também considerável preocupação com as intervenções clínicas e com o desenvolvimento emocional da vítima em detrimento ao oferecimento de um suporte que também conte com o seu acesso à justiça e o exercício da sua cidadania, reforçando assim o lugar da Psicologia na área da Justiça.

O código de ética profissional do psicólogo (2005), por meio de seus princípios fundamentais, aponta para a importância de se basear o trabalho profissional na promoção da liberdade, da igualdade e na integralidade do ser humano e sua atuação será realizada com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural. (Código de ética profissional do psicólogo, 2005)

O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, por meio de seu editorial “Entremeio: Psicologia e Política” (2017), justifica o não envolvimento da Psicologia nas questões sociais por meio de uma análise histórica, na qual a ditadura brasileira predominou, entre os anos de 1964 e 1985, sendo a Psicologia fundada no Brasil em 1971. Além disso, a dicotomia entre ciências humanas e ciências sociais fez valer a Psicologia como uma profissão na qual o social não poderia ser abarcado, limitando a mesma nos estudos relacionados ao indivíduo e suas transformações.

Na atualidade, os conselhos regionais bem como o Conselho Federal de Psicologia se unem no sentido de reforçar a importância da Psicologia nos contextos sociais e políticos, por meio do posicionamento crítico com relação às políticas públicas e as violações de direitos, especialmente das populações vulneráveis, como LGBTs, populações negra e indígena, migrantes, pessoas com deficiência, população em situação de rua, mulheres, crianças, adolescentes, idosos, soropositivos entre muitos outros. (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Políticas públicas, reforma e desmonte dos direitos sociais, 2017).

As universidades, por sua vez, demonstram interesse cada vez maior nas aplicações institucionais e comunitárias da Psicologia. Os estatutos e leis específicas para a regulamentação de direitos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente bem como a Lei Maria da Penha, hoje são transmitidos às alunas(os) como um importante instrumento de intervenção a ser realizado juntamente com os demais profissionais que fazem parte da rede de serviços.

O presente artigo, portanto, tem como objetivo apresentar algumas particularidades da atuação do(a) psicólogo(a) no atendimento à vítima de violência urbana, como a atuação interdisciplinar e o acolhimento do testemunho das vítimas de violência, tendo como foco principal o oferecimento do acesso à justiça para além do atendimento clínico, reafirmando o compromisso da Psicologia com os direitos humanos e a memória das vítimas, privilegiando metodologias interdisciplinares e a participação desta para o exercício pleno de sua cidadania e acesso à direitos.

Do privado ao público – Um desafio para a Psicologia

Conforme afirmado anteriormente, é comum observar o comprometimento do psicólogo e da psicóloga nas intervenções clínicas a serem realizadas junto à vítima de violência em detrimento às intervenções relacionadas aos aspectos sociais que a temática comporta. A violência por vezes é ainda tratada pelo profissional da Psicologia como algo da ordem do privado, a ser elaborada nos consultórios e desconectada da rede de instituições de assistência, saúde e justiça.

A violência contra crianças e adolescentes é um exemplo. Mesmo que suspeita, esta deve obrigatoriamente ser comunicada ao Conselho Tutelar, conforme o art. 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 2002). Uma ameaça de morte realizada contra uma mulher vítima de violência, especialmente após a realização da medida protetiva, deve ser objeto de queixa criminal, segundo parágrafo 2º da lei Maria Penha (Brasil, 2006). Um ato de discriminação racial deve ser encaminhado para a coordenação de políticas para a população negra e indígena, segundo decreto estadual 54.529/2009. (Brasil, 2009).

Existem ainda outros exemplos: pessoas com deficiência e idosos, quando vítimas de violência, podem ser encaminhadas para delegacias especializadas, algumas delas contando com funcionários habilitados para se comunicarem por meio de Libras. Homossexuais, lésbicas, bissexuais e transexuais, graças ao decreto 54.032/2009, podem procurar a coordenação de políticas para a diversidade sexual em caso de discriminação.

Todas estas possibilidades de encaminhamentos, além de complementarem o trabalho clínico realizado com a vítima de violência, reforçam o compromisso do profissional da Psicologia com o ambiente, com a realidade social que o permeia.

É importante ressaltar, porém, que alguns desafios ainda não foram superados. No Brasil, não existem políticas regulamentadas para a assistência e a proteção das vítimas de violência urbana. O artigo 245 da constituição federal afirma que: A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito. (Brasil, 1988)

Apesar de importante para a efetiva responsabilização do Estado para com a assistência às vítimas de violência, não especifica de que maneira tal assistência será oferecida nem por qual profissional será realizado o apoio.

O art. 278 da Constituição do Estado de São Paulo afirma que o poder público promoverá programas especiais, admitindo a participação de entidades não governamentais em diversas ações, entre elas na criação e manutenção de serviços de prevenção, orientação, recebimento e encaminhamento de denúncias de violência. Com base neste artigo o Governo do Estado de São Paulo mantém um programa público de atendimento à vítima que ainda busca sua municipalização para as demais regiões do Estado (Constituição do Estado de São Paulo, 1989)

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, mais especificamente em seu artigo 150, descreve que “cabe ao poder judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para a manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da infância e da juventude”. Este artigo legitimou o lugar e a função dos psicólogos e psicólogas na justiça, antes ocupando funções escusas e não certificadas (Brito, 2012). Entretanto, ainda são poucas as oportunidades oferecidas para o aumento do contingente destes profissionais neste importante âmbito.

Observa-se, portanto que, apesar de alguns avanços, os psicólogos e psicólogas ainda encontram diversos obstáculos para sua atuação junto à justiça, sendo este ambiente potencial para o favorecimento da elaboração da violência sofrida pela vítima e para a legitimação de seu sofrimento como algo a ser concebido e transformado no âmbito público.

O atendimento às vítimas de violência, para que seja realizado com o devido cuidado e efetividade, depende do apoio de diversas instituições, que além de garantirem a assistência à vítima também asseguram a sua integridade física e psicológica.

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